George Berkeley, por Kenneth P. Winkler

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Kenneth P. Winkler*

Tradução: Jaimir Conte

Filósofo irlandês. Berkeley argumentou de maneira vigorosa contra a existência da matéria ou substância material. Seus argumentos, Hume escreveu mais tarde, “não admitem nenhuma resposta e não produzem nenhuma convicção”, mas o próprio Berkeley estava convencido de que a negação da matéria (ou imaterialismo) estava mais próxima do senso comum, mais distante do ceticismo, e mais alinhada com os desenvolvimentos recentes na ciência do que o materialismo (ver fisicalismo) que ele encontrou em Descartes, Malebranche, Locke e Newton. Berkeley não negou a existência dos corpos; em vez disso, ele interpretou as afirmações sobre os corpos como sendo afirmações sobre percepções ou ideias. “A mesa sobre a qual escrevo, digo, existe”, escreveu ele, “ou seja, eu a vejo e sinto; e se eu estivesse fora de minha sala de estudos deveria dizer que existia, significando com isso que se eu estivesse na minha sala de estudos eu poderia percebê-la, ou que algum outro espírito a percebe atualmente” (Works, vol. 2, p. 42).

Em 1707-8, como estudante e fellow do Trinity College, de Dublin, Berkeley completou dois cadernos conhecidos atualmente como Comentários filosóficos. Neles, ele anuncia e argumenta em favor do que Berkeley chamava de “o Princípio”: ser é ser percebido, ou perceber (ou querer, ou agir). As casas, montanhas e rios cujo esse é percipi (cujo ser é ser percebido) não têm existência separada das mentes ou espíritos que os percebem ou agem sobre eles.

Teoria da visão

O primeiro livro importante de Berkeley, Um ensaio para uma nova teoria da visão (1709), é uma tentativa de explicar como vemos a distância, o tamanho e a orientação dos objetos, partindo do pressuposto (herdado de escritores anteriores) de que eles não são vistos diretamente. Berkeley assume que a distância, o tamanho e a orientação são percebidos diretamente pelo tato. Vemos a distância, por exemplo, apenas porque a experiência confere às aparências visuais um significado tangível. Passamos a associar ideias tangíveis (incluindo ideias do nosso próprio corpo e seus movimentos) com as ideias que acompanham a visão – a sensação decorrente do “movimento” dos olhos, a “confusão” da aparência visual e o esforço de manter essas aparências em foco. As correlações entre os dois tipos de ideias são contingentes ou “arbitrárias”; Berkeley argumenta contra a visão, atribuída (talvez injustamente) a Descartes, de que calculamos a distância de um objeto por meio de uma espécie de “geometria inata”, inferindo-a do tamanho do ângulo formado pelos dois “eixos ópticos” ao se encontrarem no olho.

Berkeley assume no Ensaio que os objetos do tato não dependem da mente para sua existência. “Não que supor que esse erro vulgar”, escreveu ele mais tarde, “fosse necessário para estabelecer a noção ali estabelecida, mas porque estava além do meu propósito examiná-lo e refutá-lo em um discurso sobre a visão” (Works, vol. 2, p. 59). Berkeley também fala dos objetos do tato como ideias, mas adverte que o Ensaio não pressupõe que as ideias dependam da mente “Quando falo de ideias tangíveis”, ele explica, “uso a palavra ideia para qualquer um dos objetos imediatos dos sentidos ou do entendimento, em sua ampla significação, como comumente é usada pelos modernos.”(Works, vol. 1, p. 188).

Como as ideias que acompanham a visão são sinais arbitrários dos objetos do tato, Berkeley as vê como uma linguagem – uma linguagem visual na qual Deus nos fala sobre os objetos tangíveis que nos aparecerão. Assim, o Ensaio oferece o primeiro vislumbre do substituto de Berkeley para a imagem da natureza como máquina, obedecendo cegamente às leis estabelecidas há muito tempo por um Deus agora indiferente. Para Berkeley, a natureza é um texto ou discurso, renovado a cada momento e que evidencia uma providência contínua. Como um texto ou discurso, seus signos não têm poder sobre o que significam. Eles nos são úteis não pelo que causam, mas pelas intenções divinas que comunicam.

Ideias abstratas

A principal obra de Berkeley, Um Tratado sobre os princípios do conhecimento humano (1710), começa com uma tentativa de desenredar o que seu autor chama de “fina e sutil rede de ideias abstratas”. “Todos estão de acordo”, diz Berkeley, “que as qualidades ou propriedades das coisas nunca existem realmente, cada qual independente por si e separada de todas as outras, mas que estão misturadas, por assim dizer, e fundidas no mesmo objeto.”(Works, vol. 2, p. 27). No entanto, de acordo com a doutrina da abstração (conforme contida, segundo Berkeley, nos Ensaio sobre o entendimento humano [1689], de Locke), a mente pode, por exemplo, formar uma ideia da cor de um objeto independentemente de suas outras propriedades ou qualidades. Quando a mente posteriormente observa que diferentes cores são semelhantes, ela pode formar “uma ideia de cor em abstrato que não é nem vermelha, nem azul, nem branca, nem qualquer outra cor determinada”. E “pela mesma precisão ou separação mental”, diz Berkeley, alega-se que se formam ideias abstratas de coisas compostas, como a ideia de um ser humano, ou de um triângulo em geral (Works, vol. 2, p. 28).

O principal argumento de Berkeley contra as ideias abstratas baseia-se na premissa de que não podemos conceber o impossível. Como o objeto de uma ideia abstrata não pode existir isoladamente, também não pode ser concebido isoladamente. O próprio Locke havia insistido que tudo o que existe, seja substância ou modo, é particular. Ele inferiu disso que toda ideia é particular. Berkeley defende a conclusão adicional de que toda ideia é de algo particular. No entanto, ele não nega a possibilidade do pensamento abstrato ou geral. Quando pensamos na natureza humana em geral, ele sugere, consideramos ou prestamos atenção a um único aspecto de uma ideia totalmente determinada. E quando demonstramos teoremas em geometria, tomamoss um único triângulo como o representante imparcial de todos eles.

Berkeley atribui a doutrina da abstração à suposição de que toda palavra significativa representa uma ideia – uma suposição que ele nega. Ele observa que uma palavra não precisa evocar uma ideia em todas as ocasiões em que é usada, e argumenta que algumas palavras, usadas para expressar emoção ou incitar ação, não representam ideias de forma alguma. No Alciphron (1732), Berkeley argumenta que palavras como força e graça devem seu significado não a ideias que possamos conceber isoladamente, mas sim ao seu lugar em um sistema de signos com relevância para a prática ou a experiência.

Imaterialismo

O meio da filosofia de Berkeley é o argumento: ele o utiliza não apenas para persuadir, mas para expor e esclarecer. Dos muitos argumentos que ele oferece contra a existência da matéria, os cinco seguintes são centrais:

(1) É um ditame do bom senso que percebemos imediatamente coisas como casas, montanhas e rios. Mas a filosofia ensina que percebemos imediatamente apenas as nossas próprias ideias. (Nos Princípios, Berkeley tende a assumir, sem argumentos, que as ideias dependem da mente.) Segue-se que casas, montanhas e rios são ideias, e que não existem “sem” (ou seja, independentemente da) a mente.

(2) Se investigarmos o significado da palavra existir quando aplicada a coisas sensíveis, descobriremos que significa apenas que elas são percebidas ou perceptíveis. Portanto, a existência de coisas não pensantes “sem …. relação com seu ser percebido” é “perfeitamente ininteligível”(Works, vol. 2, p. 42).

(3) A noção de matéria é contraditória ou vazia. É contraditória se dissermos qualidades sensíveis existem nela (de modo que elas não precisam de nada mais para sua existência), porque as qualidades sensíveis são ideias, e ideias não podem existir sem a mente. Se tentarmos escapar à contradição dizendo, vagamente, que a matéria é um substrato ou “suporte” de qualidades desconhecidas, esvaziamos a noção de conteúdo.

(4) É impossível até mesmo conceber corpos “não pensados ou sem a mente”. “A mente, sem prestar atenção a si mesma, se engana ao pensar que” pode fazê-lo, mas a tentativa é contraproducente, porque os corpos que a mente apresenta como exemplos “são apreendidos por ela ou existem nela” (Works, vol. 2, p. 50-1).

(5) Mesmo se a matéria existir, não podemos saber se ela existe. Não podemos sabê-lo pelos sentidos, porque percebemos imediatamente apenas nossas próprias ideias. Nem podemos sabê-lo pela razão – isto é, por meio de argumentos demonstrativos ou prováveis. Não podemos sabê-lo por meio de argumentos demonstrativos porque não há conexão necessária entre matéria e ideias. E não podemos sabê-lo por meio de argumentos prováveis (ou seja, por inferência explicativa) porque não podemos compreender a ação da matéria na mente.

Berkeley desenvolve esses argumentos tanto nos Princípios quanto nos Três Diálogos entre Hylas e Philonous (1713). Nos Princípios, o conflito entre o imaterialismo e o senso comum é, pelo menos em alguns momentos, abertamente reconhecido. Berkeley escreve em um ponto, por exemplo, que a crença em coisas fora da mente é “estranhamente [isto é, muito] predominante entre os homens”. Nos Diálogos, ele se preocupa mais em enfatizar a harmonia entre os dois. Os Diálogos também preenchem uma lacuna nos argumentos (1) e (3), ao argumentar em favor da suposição de que os objetos imediatos da percepção são ideias dependentes da mente. Philonous (o porta-voz de Berkeley) busca estabelecer isso por meio de um apelo à relatividade perceptiva: porque os objetos imediatos da percepção variam com as mudanças em nós, ele argumenta, eles devem existir apenas na mente. Mas nem Philonous nem Berkeley inferem disso que as próprias qualidades existem ali. Eles chegam a essa conclusão adicional argumentando que as ideias dependentes da mente não podem representar qualidades independentes da mente. Isso porque uma coisa só pode representar outra se forem semelhantes, e “uma ideia não pode ser semelhante a nada a não ser a uma ideia” (Works, vol. 2, p. 44).

Berkeley rejeita uma versão da distinção entre qualidades primárias e secundárias, segundo a qual as qualidades primárias (como extensão e figura) são independentes da mente, enquanto as qualidades secundárias (como cor e sabor, por exemplo) não são (ver qualidades, primárias/secundárias). Ele argumenta que não podemos conceber um objeto desprovido de todas as qualidades secundárias; assim, segue-se que as qualidades primárias existem onde as secundárias existem – “na mente e em nenhum outro lugar”. Uma concepção puramente geométrica do corpo, ele sustenta, é uma abstração ilegítima; nossa concepção de corpo está para sempre marcada ou manchada por sua origem nos sentidos. No entanto, no De motu (1721) e em Siris (1744), Berkeley mostra que está disposto, para fins científicos, a considerar o corpo como incluindo apenas qualidades primárias. Essa distinção entre qualidades primárias e secundárias é mais pragmática do que metafísica: as qualidades primárias, sendo mais úteis na previsão e o controle, tornam-se objetos de atenção seletiva.

Berkeley considera os corpos ou as coisas reais como sensações ou “ideias dos sentidos”. Embora sejam mais regulares, vívidas e constantes do que as ideias da imaginação, ele adverte, que são “ainda assim, ideias” (Works, vol. 2, p. 54). Sua realidade – sua maior força, ordem e coerência – não é um argumento de que elas existam independentemente da mente.

Berkeley frequentemente sugere que os corpos são agrupamentos ou coleções de ideias mais simples, mas ele fornece pouca orientação sobre como esses agrupamentos devem ser entendidos. Talvez sejam coleções literais; em tal caso, parecem incluir ideias de vários sentidos, existindo em mentes diferentes em momentos diferentes. Mas outras passagens sugerem que Berkeley é um fenomenalista, sustentando que afirmações sobre corpos tem um significado equivalente (ou, pelo menos, condições de verdade) a afirmações sobre o que percebemos, ou perceberíamos, em certas circunstâncias (ver fenomenalismo).

Substância e espírito

O fenomenalismo é às vezes descrito como “Berkeley sem Deus”. Mas o fenomenalismo de Berkeley é teocêntrico: ele acredita que as afirmações sobre o que perceberíamos são verdadeiras apenas por causa das volições permanentes da divindade. Berkeley reconhece que a atuação divina não pode ser “cega”. Portanto, a atividade sustentadora de Deus tem dois aspectos: ele deseja que tenhamos certas ideias em certas circunstâncias, e Ele percebe as ideias que Ele deseja.

As ideias dos sentidos, observa Berkeley, são independentes de nossa vontade. Esse fato, juntamente com a sabedoria e o poder que elas exibem, constitui o principal argumento de Berkeley a favor da existência de Deus. No Alciphron, a apresentação do argumento de Berkeley enfatiza o caráter semelhante à linguagem de nossa experiência. A inferência para a existência de Deus é semelhante à inferência da fala ou da escrita para a existência de outras mentes finitas.

Berkeley argumenta que a única substância é o espírito. Ele não abandona a visão tradicional de que qualidades ou modos percebidos precisam de um substrato. Mas o substrato no qual existem é uma mente ou espírito. No entanto, mesmo que cor e forma, por exemplo, existam na mente, elas não podem ser atribuídas à mente. Elas estão na mente “não como modo ou atributo, mas como ideia” (Works, vol. 2, p. 61).

Como Berkeley sabe que existem substâncias? Ele acredita que nossa própria substancialidade é conhecida de forma imediata e reflexiva. Mas ele insiste que não temos ideia de substância, porque os espíritos são seres ativos, e as ideias, sendo passivas e inertes, não podem se assemelhar a eles. Na segunda edição dos Princípios (1734), Berkeley explica que temos noções de mente ou espírito. Isso não é uma teoria da representação, mas uma forma de dizer que entendemos palavras como mente ou alma. A base parece ser nossa a compreensão da palavra eu – nossa consciência reflexiva de nós mesmos. Também se diz que temos noções de relações porque, de acordo com Berkeley, elas implicam um ato da mente que compara.

Ciência

Berkeley argumenta que as únicas causas verdadeiras são os espíritos; as “causas” corpóreas são apenas marcas ou signos. Dizemos, evidentemente, que o fogo aquece e a água esfria, mas “em relação a essas coisas, devemos pensar como os sábios e falar como o vulgo” (Works, vol. 2, p. 62). A única verdadeira causa em ação na natureza é Deus, “o autor da natureza”, e uma lei científica é uma regra da linguagem em que ele fala

A metafísica de Siris

Trechos em Siris convenceram alguns leitores de que no final de sua vida Berkeley se voltou para o platonismo – para a crença na existência de objetos do intelecto puro mais reais do que as coisas sensíveis, das quais eles são os modelos ou arquétipos. Mas Siris é muitas vezes um livro especulativo, cujas “máximas antigas” são propostas não “como princípios, mas apenas como sugestões” (Works, vol. 2, p. 157), e seus objetos do intelecto puro não são, em qualquer caso, arquétipos de objetos sensíveis, mas sim espíritos ou aspectos do espírito.

Obras

The Works of George Berkeley, Bishop of Cloyne, ed. A.A. Luce and T.E. Jessop (London: Thomas Nelson, 1948–57).

Bibliografia

Atherton, M.: Berkeley’s Revolution in Vision (Ithaca, NY: Cornell University Press, 1990).

Dancy. J.: Berkeley: An Introduction (Oxford: Blackwell, 1987).

Grayling, A.C.: Berkeley: The Central Arguments (La Salle, IL: Open Court, 1985).

Luce, A.A.: Berkeley and Malebranche (London: Oxford University Press, 1934).

Pitcher, G.: Berkeley (London: Routledge and Kegan Paul, 1977).

Tipton, I.C.: Berkeley: The Philosophy of Immaterialism (London: Methuen, 1974).

Urmson, J.O.: Berkeley (Oxford: Oxford University Press, 1982).

Warnock, G.J.: Berkeley, 3rd edn. (Oxford: Blackwell, 1982).

Winkler, K.P.: Berkeley: An Interpretation (Oxford: Clarendon Press, 1989).

* Retirado de: A Companion to Metaphysics. Edited by: Jaegwon Kim and Ernest Sosa. Blackwell, 1995, pp. 147-151.

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