Siris, uma cadeia de reflexões e investigações filosóficas acerca das virtudes da água de alcatrão e diversos outros assuntos relacionados entre si e derivados uns dos outros

Título original em inglês: Siris, a Chain of Philosophical Reflexions and Inquiries, Concerning the Virtues of Tar-water, and divers other Subjects connected together and arising One from Another.
© Tradução: Jaimir Conte, 2020
Aguardando publicação!!!
Prefácio à tradução francesa de 1745
David-Renaud Boullier1
Trad. Jaimir Conte
O rumor que a obra a seguir acaba de produzir na Inglaterra, e a recepção favorável que ela teve, mais a importância do assunto, ou, para falar mais corretamente, os vários assuntos que ela trata, me persuadiram de que ficaríamos contentes de vê-la traduzida para o nosso idioma. Conheço poucas que encerram em tão pouco espaço tantas coisas curiosas e úteis, ou que possam interessar ao leitor por uma variedade mais agradável.
Em primeiro lugar, exponhamos as surpreendentes virtudes de um remédio até aqui desconhecido entre nós, embora o assunto estivesse bastante difundido em todos os lugares. O ilustre autor que recomenda seu uso neste Tratado e que, desde as profundezas da América, passou para a Europa um remédio tão maravilhoso, se é que devemos nos limitar a qualificá-lo dessa maneira, é um desses homens raros, que unem ao zelo mais ardente pela felicidade do gênero humano todas as luzes capazes de tornar útil esse zelo. Grande naturalista e, além do mais, um grande filósofo (porque é muito menos comum do que se poderia pensar encontrar juntas essas duas qualidades distintas) depois de ter se convencido da eficácia do remédio em questão, por um grande número de testes bem-sucedidos, ele descobriu, no profundo estudo que fez da natureza, o suficiente para ligar suas experiências a princípios sólidos que as explicam, e assim começou a variar as próprias experiências e a estendê-las muito mais, seguindo uma analogia que parece muito razoável. A experiência é, sem dúvida, uma grande mestra; mas nem todo o mundo sabe interrogar essa mestra, fazê-la falar ou aproveitar todas as suas lições. Foi isso que nosso autor cumpriu, de maneira a atrair a gratidão do público que colherá os frutos de seus generosos cuidados. E, de fato, não é suficientemente surpreendente ver aqui uma teoria inteligente que, baseada nos fatos, a faz tão correta. A economia animal, a análise química, a organização das plantas, a natureza de seus sucos, as propriedades conhecidas dos sais, dos óleos, dos bálsamos, etc. as máximas mais invioláveis e as observações mais confiáveis da medicina, tudo contribui para mostrar aqui que os efeitos salutares atualmente produzidos pela água de alcatrão em tantos pacientes e doenças de diferentes tipos, essa água tinha necessariamente operá-los.
Mas o objetivo do livro está longe de limitar-se a isso. O autor oferece visões mais amplas e, ao trabalhar pela saúde do corpo, prepara um excelente alimento para o espírito. A partir de investigações sobre as plantas e suas diferentes resinas, ele passa a considerar os primeiros elementos dos corpos, as leis pelas quais toda a natureza é governada e a harmonia geral que reina entre as partes deste universo. Ele levanta seu voo ainda mais alto, e todos ficarão surpresos, sem saber por qual encantamento isso foi feito; todos serão subitamente transportados para a região de ideias puras e para as estradas menos percorridas do mundo intelectual. Não tenho dúvidas de que aqueles que se sentirão fortalecidos o suficiente para seguir o autor até esse ponto, lhe agradecerão pelo agradável engano que ele lhes proporcionou, ao dar muito mais do que seu título parecia prometer.
Fundamentalmente, todavia, este título, se prestarmos bem atenção, promete muito da parte de um escritor como o nosso. Siris,* é assim que o original inglês é intitulado, significa uma cadeia. De fato, é uma série de pensamentos e reflexões que estão todos ligados entre si, e cujo encadeamento conduz a grandes distâncias do lugar de onde começamos. Essa desordem aparente tem suas graças e seus usos, que muitas pessoas preferirão ao método regular e simétrico de certos escritos dogmáticos. Contém até uma ordem oculta, que é precisamente a que costuma seguir em seus pensamentos todo espírito nascido para especulações elevadas. Um gênio dessa natureza não tende a restringir-se dentro dos limites de um assunto menor. As primeiras visões que esse assunto lhe fornece o levam a outras mais gerais; à medida que ele pensa, amplia cada vez mais seu terreno; e por um progresso imperceptível da meditação, cujo curso é governado pela conexão que as verdades têm entre si, não demora muito para compreender os primeiros princípios. Não preciso advertir meu leitor que é grande a diferença entre um escritor assim e esses autores superficiais, que viajando por muitos países sem descer à terra aplaudem a si mesmos por terem reunido confusamente no mesmo volume muitas coisas desconexas e incompatíveis. Estes, como borboletas, volteiam aleatoriamente sobre mil objetos diferentes que sua visão apenas toca um após outro: aquele é uma águia que se esforça e que, de um ponto de vista muito alto, abarca, por assim dizer, todo o hemisfério num relance.
Nosso erudito prelado não tem pela Antiguidade esse desprezo injusto que afeta muitos modernos; portanto, em quase toda parte ele se baseia em noções da filosofia antiga, que parece as maiores obras lhe são familiares. É um prazer ver com que clareza ele coloca em ordem esse caos de opiniões aparentemente estranhas, com que destreza as reconcilia e, muitas vezes, as reduz a um sentido muito razoável. Enquanto estivermos interessados na honra da natureza humana, devemos certamente agradecê-lo por ter livrado a doutrina desses primeiros sábios da Grécia e do Oriente de não sei quantas extravagâncias ímpias que lhe foram imputadas apenas por falta de compreensão. Em particular, veremos que ele explicou de maneira tão clara seu sistema sobre a alma do mundo, que em vão nossos espinosistas e nossos outros espíritos fortes fingiram se distorcer para reivindicar esses grandes nomes.
Embora a mente humana sempre tenha tido muita inclinação para extraviar-se, há razões para acreditar que certas verdades fundamentais como aquelas que concernem a Deus, a uma Providência, à natureza da alma, etc., foram em todas as épocas conhecidas por bons espíritos, e não é sem uma extrema satisfação que, entre os filósofos antigos, através da obscuridade frequentemente afetada por seu estilo, nós desvendamos o testemunho que lhes deram. Esses filósofos pensaram profundamente, e geralmente tinham pontos de vistas muito justos e muito luminosos. O que lhes faltava, conhecer o método, a nitidez, a precisão, é uma vantagem que temos sobre eles; e ainda que apenas como reconhecimento pelas coisas belas que nos deixaram, deveríamos, parece-me, fazer que sirvam para colocar seus pensamentos em uma perspectiva melhor.
Aqueles que não conseguem se acostumar com as visões e atrações respeitadas em Física pelos filósofos ingleses por cerca de sessenta anos, logo perceberão se se aplicarem a seguir as ideias de Berkeley, que, embora ele fale a linguagem desses filósofos, está a salvo das objeções que se lhes pode fazer a esse respeito. Segundo ele, os corpos não têm força neles, nenhum princípio interno de movimento. Todos os fenômenos naturais, que atingem nossos olhos, são o efeito imediato da ação de Deus, regulada seletivamente por certas leis. Somente aos espíritos são agentes reais, princípios reais de ação. É neles apenas que reside um poder propriamente dito e, para resumir, só eles produzem as substâncias reais; o mundo corpóreo não têm uma existência absoluta, e que deve ser considerado apenas como um conjunto de aparências, como um curso regulado de fenômenos ligados entre si com uma regularidade admirável e sujeitos a uma certa ordem que a sabedoria divina estabeleceu para o uso e a correspondência mútua dos seres inteligentes.
O que quer que seja deste sistema, aquele que tinha o direito natural de receber toda honra nos assegura que não é novo e até se encontra perfeitamente em conformidade com as ideias de Aristóteles e Platão; abandonando-se o julgamento àqueles que são capazes de pesar as razões. Ainda assim, é certo que muitos dos nossos filósofos geômetras e mecanicistas atuais, com sua gravidade absoluta, seu espaço criado ou não criado, suas virtudes atrativas e repulsivas de várias ordens, suas tendências ao movimento, suas forças mortas e vivas, finalmente, com essa parafernália dolorosa de propriedades inconcebíveis e inexplicáveis que eles admitem nos corpos, lançaram sobre toda a filosofia uma estranha incerteza. Ao dotar a matéria com tantas faculdades raras, nos vemos reduzidos a não saber mais o que é a matéria; nós a espiritualizamos; confundimos substâncias de diferentes tipos e abusamos miseravelmente do testemunho dos nossos sentidos para contradizer a evidência de nossas ideias.
Tendo assim transformado a matéria num espírito, não deveria nos surpreender se muitos desses creiam melhor que nossa é alma material; e se classificassem o pensamento e sentimento entre tantas outras operações ou propriedades maravilhosas, das quais nada, segundo eles, impede que a matéria seja suscetível. Então, é esse o fruto que deveria ser extraído do estudo da natureza? E o tão alardeado progresso da física moderna resultará só resultará em nos lançar em tal obscuridade? Não senhores, os mecanistas podem fazer bem, todos os seus cálculos sublimes não apagam as diferenças profundamente gravadas na natureza das coisas. A substância inteligente não pode ser uma substância visível e palpável, e a causa ativa que só imprime o movimento não pode ser confundida com o ser passivo que o recebe. O movimento nos corpos é só uma imagem e, por assim dizer, a sombra desse poder que reside apenas nos espíritos; ele prova esse poder dos espíritos, pelo próprio fato de que é o seu efeito, e, portanto, estabelece sua existência inteiramente separada daquela dos corpos. É raciocinando que o verdadeiro filósofo leva toda a sua investigação física ao seu verdadeiro propósito. Ele ascende constantemente do corpo à mente. Nas leis fixas da natureza ele vê a liberdade soberana de seu autor. Longe de atribuir à matéria forças e faculdades que ela não possui, seus diversos fenômenos são para ele apenas tantas linhas e expressões do poder da inteligência eterna de um Ser simples, imaterial, infinito.
Como o propósito do bispo de Cloyne não era esgotar os temas dos quais tratava, senão fornecer adequadamente uma variedade de aforismos nos quais se contentava em tocar ligeiramente nos pontos de vistas e proporcionar as perspectivas que sua meditação lhe oferece, ocorreu-me acrescentar várias notas à minha tradução, nas quais eu teria tomado o cuidado de esclarecer, desenvolver e de apoiar várias verdades importantes que o texto indica com poucas palavras. Além do mais, como os antigos filósofos são citados, eu poderia ter referido suas palavras o tempo todo, discutido frequentemente seu significado e enchido essas observações com todos os cuidados da crítica. Mas pensei que o melhor partido a tomar era conformar-se ao espírito do autor, que parece ter desejado deixar à inteligência de seus leitores algo para fazer, e que, por outro lado, parece evitar propositadamente qualquer aparato supérfluo de aprendizagem.
Então, restringi-me ao simples dever de intérprete e tratei de representar fielmente meu original, que, para ser digno, não precisava de nenhum floreio estrangeiro.
Além disso, é bom que se saiba que respeitamos a terceira edição da Siris, publicada recentemente em Dublin sob a revisão do autor e que tivemos o cuidado de tirar proveito dos acréscimos e correções manuscritas que ele teve a gentileza de comunicar.
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1 Prefácio (“Avertissmemt du traducteur”) à primeira tradução francesa de Siris, publicada com o título Recherches sur les vertus de l’eau de goudron, où l’on a joint des réflexions philosophiques sur divers autres sujets (traduit de l’anglais.), Amsterdam: Pierre Mortier, 1745, p. v-xx, sem indicação de autoria mas atribuído a David-Renaud Boullier (1699-1759). Ver Popkin, 1958.
*Σεὶρις catena encontra-se em Xenofonte, embora σεὶρα seja mais utilizada entre os gregos. Eu suprimi esse título, demasiado obscuro para a comunicação com os meus leitores, contentando-me com o equivalente.
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